FUNDAMENTOS III - NETTO. SS e Tradição Marxista

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Possíveis relações entre Serviço Social e tradição marxista. As vertentes culturais em que se inserem o pensamento marxiano e o Serviço Social são dois movimentos bastante diversos, embora haja um denominador comum para ambos.



“o que é piso comum para Marx e o Serviço Social são os quadros macroscópicos, inclusivos e abrangentes da sociedade burguesa. Tanto a obra marxiana quanto o Serviço Social são impensáveis fora do âmbito da sociedade burguesa. De fato, ambos têm como substrato imediato o que está sinalizado na nossa bibliografia sob o rótulo de ‘questão social’ – conjunto de problemas econômicos, sociais, políticos, culturais e ideológicos que cerca a emersão da classe operária como sujeito sócio-político no marco da sociedade burguesa” (Netto, 1989:90).



Aspectos que diferenciam profundamente o Serviço Social e a obra marxiana:
diferença entre a “questão social” sobre a qual Marx se debruça e a “questão social” na qual o Serviço Social surge como profissão institucionalizada.
Enquanto Marx se defronta com a “questão social” ainda no período do capitalismo concorrencial, o Serviço Social só se debruça sobre ela na passagem daquele último para a idade do monopólio.



Enquanto Marx crítica a “questão social” em sua fase “clássica”, o Serviço Social atua sobre ela em seu momento mais tardio, mais avançado.
Para Marx, a “questão social” está estreitamente vinculada ao capitalismo, e sua superação só é possível com a ultrapassagem deste modo de formação social.
Já o Serviço Social se coloca frente à tarefa de administrar a “questão social” no interior desta forma de organização da sociedade.


“Para Marx, o que a bibliografia tradicional do Serviço Social (e não só) entende por ‘questão social’ é um complexo de processos absolutamente indivorciável do capitalismo; mais exatamente, para Marx, o capitalismo é a produção e a reprodução contínua e ampliada da ‘questão social’. Na ótica marxiana, a superação da ‘questão social’ demanda, liminarmente, a ultrapassagem dos marcos do capitalismo. Ora, o pressuposto do Serviço Social original aponta para o enfrentamento da ‘questão social’ nos marcos do capitalismo, ou seja, o Serviço Social surge inclinado a subsidiar a administração da ‘questão social’ nos quadros da sociedade burguesa” (Netto, op.cit.:90-1).



Esta profissão só emerge na fase monopolista do capitalismo, quando o Estado burguês passa a desenvolver formas sistemáticas, estratégicas e coesivas de enfrentamento das manifestações da “questão social”. Isto significa, de acordo com o autor, que o Serviço Social está diretamente relacionado não à “questão social”, de uma forma geral, mas à “‘questão social’ sob o capitalismo dos monopólios” (op.cit.:91), e a sua administração, sua manutenção e sua reprodução são algumas das tarefas do Serviço Social.





Um outro aspecto que diferencia o Serviço Social da obra marxiana diz respeito às vertentes culturais nas quais eles se situam. De acordo com Netto, a vertente cultural a que Marx se vincula é a “vertente revolucionária”, que está diametralmente oposta àquela que se prende o Serviço Social, a “vertente conservadora”.




“É a vertente revolucionária, à qual Marx se conecta num processo que a inflete medularmente, ao lhe conferir o tônus da contemporaneidade, apreendendo a natureza, a estrutura e a dinâmica específicas da sociedade burguesa. Trata-se de uma vertente que, a partir de Marx, só deixará de ser moderna quando a socialidade burguesa se exaurir completamente: Marx é um pensador inserido caracteristicamente na ordem burguesa, ainda que a sua pesquisa seja toda ela direcionada para derruir e ultrapassar esta ordem” (Netto, op. cit.: 91).



“(...) vertente conservadora, na qual se inscreve o Serviço Social: é uma das suas concretizações profissionais, quando ela, na passagem do capitalismo concorrencial à idade do monopólio, transita para a intervenção, a gestão e a administração institucionais de variáveis que concorrem na ‘questão social’. Na vertente conservadora, tal como ela se constitui sob a lente do estilo de pensar positivista, cristaliza-se a auto-representação do ser social funcional aos marcos do capitalismo consolidado” (Netto, op. cit.:92).



Pode se perceber a existência de um nítido corte entre estas duas vertentes culturais, cujas conseqüências constituem, no plano teórico, um cenário de mútua excludência, já que o Serviço Social se configura como uma profissão que surge no interior de um conjunto de saberes antagônicos às concepções teórico-metodológicas marxianas.




Ocorreu foi uma aproximação enviesada de setores do Serviço Social à tradição marxista, “um viés derivado dos constrangimentos políticos, do ecletismo teórico e do desconhecimento das fontes ‘clássicas’” (p. 98).
No entanto, os avanços e equívocos derivados dessa aproximação enviesada desenharam uma base mais sólida para recolocar a questão da interlocução entre setores do Serviço Social e a tradição marxista, projetando que tal interlocução se aprofundaria e se acentuaria.




Esta projeção efetuada pelo autor, parece ter se efetivado, sendo profuso o número de textos produzidos no interior do Serviço Social que se utilizam das contribuições da tradição marxista. Um ponto que deve ser destacado é a íntima relação entre a aproximacão do Serviço Social à tradição marxista e o surgimento de seu processo de produção de conhecimentos.



O início deste processo data dos anos oitenta, década em que o Serviço Social atinge a sua “maioridade no domínio da elaboração teórica”. Esta maioridade intelectual alcançada pelo Serviço Social só pode ser devidamente percebida se for articulada às contribuições da “tradição marxista”.