FUNDAMENTOS III - NETTO. DITADURA E SS

NETTO. J. P. Ditadura e Serviço Social. São Paulo, Cortez, 1991 (capítulo 2).

Vínculo entre a autocracia burguesa e a renovação do Serviço Social

Erosão e deslegitimação do Serviço Social tradicional.

· traços mais subalternos do exercício profissional
· estrato de executores de políticas sociais

SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL: “prática empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada, parametrada por uma ética liberal-burguesa e cuja teleologia consiste na correção – desde um ponto de vista claramente funcionalista – de resultados psicossociais consideradosnegativos ou indesejáveis, sendo pressuposta a ordenação capitalista da vida como um dado factual ineliminável”.

Reformulação do Serviço Social
Condições novas: reorganização do Estado, modificações profundas na sociedade.

Impactos sobre a prática e a formação profissionais.

Mercado nacional de trabalho, macroscópico e consolidado.

· Reorganização do Estado
· Processo de desenvolvimento
· Reequacionamento a malha organizacional
· Reformulação organizacional e funcional
· Complexificação dos aparatos em que se inseriam os profissionais
· Diferenciação e uma especialização das atividades dos AS

Mercado nacional de trabalho: Estado, médias e grandes empresas

Crescimento industrial (Serviço Social de empresa)

Elenco mais amplo das políticas sociais. Novo padrão de exigências para o desempenho profissional. Alterações no relacionamento dos profissionais com:

· as instâncias hierárquicas
· as fontes dos seus recursos
· os outros profissionais com que concorriam
· os seus usuários.

Integrar o conjunto de procedimentos administrativos “modernos”

Efeito global dessas exigências: erosão do Serviço Social tradicional

Dimensionamento técnico-racional: mudou o perfil do profissional

Profissional “moderno” - profunda rotação na formação dos AS

Refuncionalização da formação: confessionalismo, paroquialismo e provincialismo.

O SERVIÇO SOCIAL INGRESSA COM ISSO, NO CIRCUITO DA UNIVERSIDADE

Influxo da sociologia, da psicologia social e da antropologia.

Ausência de fortes tradições intelectuais e de investigação na formação profissional.

Viés tecnocrático e asséptico das disciplinas sociais na universidade da ditadura.

Primeira metade de 60: carecia de elaboração teórica significativa

LAICIZAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL

Possibilidade de alternativas ao exercício profissional demandadas pela DM

RENOVAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL: conjunto de características novas; rearranjo de suas tradições; assunção das contribuições das tendências do pensamento social contemporâneo; legitimação prática, através de respostas a demandas sociais; validação teórica, mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais.

Construção de um pluralismo profissional.

Validação teórica da profissão: conquista de um espaço na interlocução com os problemas e as disciplinas das ciências sociais.

Referência a um repertório de problemas e a um arsenal heurístico mais amplos. Recepção crescente a núcleos temáticos do processo cultural contemporâneo da sociedade brasileira.

Nós mais decisivos do processo de Renovação do Serviço Social:

· instauração do pluralismo teórico, ideológico e político no marco profissional;
· crescente diferenciação das concepções profissionais, derivada do recurso diversificado a matrizes teórico-metodológicas alternativas;
· sintonia da polêmica teórico-metodológica profissional com as discussões em curso no conjunto das ciências sociais - interlocução acadêmica e cultural que tenta cortar a subalternidade intelectual - funções meramente executivas;
· constituição de segmentos de vanguarda, sobretudo mas não exclusivamente inseridos na vida acadêmica, voltados para a investigação e a pesquisa.

Conseqüências: incidência, no mundo mental do assistente social, de disciplinas sociais que sensibilizam o profissional para problemáticas macrossociais; inserção do AS em equipes multiprofissionais nas quais o seu estatuto não estava previamente definido como subalterno.

Três elementos relevantes para detectar a erosão do Serviço Social Tradicional:

· dissintonia com as solicitações contemporâneas
· insuficiência da formação profissional
· subalternidade executiva

Rebatimento profissional:

· amadurecimento de setores da categoria profissional, na sua relação com outros protagonistas e outras instâncias
· desgarramento de segmentos da Igreja católica em face do seu conservantismo tradicional;
· espraiar do movimento estudantil, que faz seu ingresso nas escolas de Serviço Social;
· referencial próprio de parte significativa das ciências sociais - dimensões críticas e populares.

Resultante: de uma parte, crítica a práticas e representações tradicionais; de outra, diferenciações no interior das práticas e representações que se reclamavam conectadas às novas exigências – precisamente aquelas que se prendiam ao Desenvolvimento de Comunidade.

Vislumbra-se, no início dos anos 60:

· visível desprestígio do Serviço Social tradicional
· crescente valorização da intervenção no plano comunitário

Três vertentes profissionais:

1. extrapola para o Desenvolvimento de comunidade os procedimentos e as representações tradicionais, apenas alterando o âmbito de sua intervenção;

2. pensa o Desenvolvimento de Comunidade numa perspectiva macrossocietária, supondo mudanças socioeconômicas estruturais, mas sempre no bojo do ordenamento capitalista;

3. pensa o Desenvolvimento de comunidade como instrumento de um processo de transformação social substantiva, conectado à libertação social das classes e camadas subalternas.

Esse processo foi abortado pelo golpe militar.

Autocracia burguesa: neutralização dos protagonistas sociopolíticos comprometidos com a democratização da sociedade e do Estado; corte dos suportes que poderiam dar um encaminhamento crítico e progressista à crise em andamento no Serviço Social tradicional; por outro lado, precipitou esta mesma crise.

A EROSÃO DO SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL NA AMÉRICA LATINA

A crise do Serviço Social tradicional - anos 60 - fenômeno internacional; contestação de práticas profissionais - Três vetores:

· revisão crítica que se processa na fronteira das ciências sociais.
· deslocamento sociopolítico de outras instituições: as Igrejas
· movimento estudantil: contestação nas agências de formação.

Expressão mais importante desse processo erosivo: América Latina, a partir de 65 – o chamado movimento de reconceptualização (ou reconceituação) do Serviço Social.

Reconceituação - parte integrante do processo internacional de erosão do Serviço Social tradicional; a ruptura com o Serviço Social tradicional se inscreve na dinâmica de rompimento das amarras imperialistas, de luta pela libertação nacional e de transformações da estrutura capitalista excludente, concentradora, exploradora; intimamente vinculada ao circuito sociopolítico latino-americano da década de 60: funcionalidade profissional na superação do subdesenvolvimento.

É esse movimento, localizável praticamente em todos os países ao sul do Rio Grande, que permite uma espécie de grande união profissional que abre a via a uma renovação do Serviço Social. Num prazo muito curto, porém, aquela grande união objetivamente se esfarinha. Concorrem para isso duas ordens de causas:

· As ditaduras burguesas não deixaram vingar as propostas de ultrapassagem do subdesenvolvimento;

· Posições e projeções distintas na crítica ao Serviço Social tradicional: um pólo investia num aggiornamento do Serviço Social e outro tencionava uma ruptura com o passado profissional.

Movimento de reconceituação - se exaure por volta de 75 - heterogeneidade – ilusão de unidade - relação com a tradição marxista - manuais de divulgação de qualidade discutível, contaminação neopositivista, pouca presença do pensamento de inspiração marxiana; bases para pensar a profissão sob o marxismo; interlocução entre o Serviço Social e a tradição marxista.


DIREÇÕES DA RENOVAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL

Três momentos: segunda metade dos anos 60; segunda metade dos anos 70; abertura dos anos 80. Três direções principais.

Primeira: PERSPECTIVA MODERNIZADORA; adequar o Serviço Social, enquanto instrumento de intervenção inserido no arsenal de técnicas sociais a ser operacionalizado no marco de estratégias de desenvolvimento capitalista, às exigências postas pelos processos sociopolíticos emergentes no pós-64; auge de sua formulação: textos dos seminários de Araxá e Teresópolis.

Nova fundamentação de que se socorre para legitimar o papel e os procedimentos profissionais; aportes extraídos do estrutural-funcionalismo norte-americano; caráter modernizador desta perspectiva: aceita como dado inquestionável a ordem sociopolítica da DM , e procura dotar a profissão de referências e instrumentos capazes de responder às demandas que se apresentam; se reporta a valores e concepções mais tradicionais, não para superá-los ou negá-los, mas para inseri-los numa moldura teórica e metodológica menos débil; foi a expressão da renovação profissional adequada à autocracia burguesa; terá sua hegemonia posta em questão a partir de meados dos anos 70, com a crise da autocracia burguesa.

Conteúdo reformista não atende às expectativas do segmento profissional que resiste ao movimento de laicização ocorrente e se recusa a romper com o estatuto e a funcionalidade subalternos historicamente assumidos pela profissão. Seu traço conservador e sua colagem à ditadura incompatibilizam-na com os segmentos profissionais críticos.

Segundo lustro da década de 70: duas outras direções.

Renovação compatível com o segmento do Serviço Social mais impermeável às mudanças: PERSPECTIVA DE REATUALIZAÇÃO DO CONSERVADORISMO; recupera a herança histórica e conservadora da profissão e os repõe sobre uma base teórico-metodológica que se aclama nova, repudiando, simultaneamente, os padrões mais nitidamente vinculados à tradição positivista e às referências conectadas ao pensamento crítico-dialético, de raiz marxiana. Intervenção microscópica, visão de mundo derivada do pensamento católico tradicional. Utiliza-se da fenomenologia; beneficia-se de um acúmulo de expectativas, referentes ao exercício do Serviço Social fundado no circuito da ajuda psicossocial.

Terceira direção: perspectiva que se propõe como INTENÇÃO DE RUPTURA com o Serviço Social tradicional. Crítica sistemática ao desempenho tradicional e aos seus suportes teóricos, metodológicos e ideológicos. Resgate crítico de tendências que supunham rupturas político-sociais de porte para adequar as respostas profissionais às demandas estruturais do desenvolvimento brasileiro. Recorre progressivamente à tradição marxista e revela as dificuldades da sua afirmação no marco sociopolítico da autocracia burguesa.

Oposição ao tradicionalismo do Serviço Social. Flagrante hiato entre a intenção de romper com o passado conservador do Serviço Social e os indicativos prático-profissionais para consumá-la.

Algumas características da PERSPECTIVA MODERNIZADORA:

· Preocupação com a problemática do desenvolvimento
· A relação subdesenvolvimento/desenvolvimento - um continuum
· Concepção teórica: estrutural-funcionalismo
· Concepção ideológica: reformismo conservador de viés desenvolvimentista
· Seminário de Araxá em 1967
· Seminário de Teresópolis em 1970
· Seminário de Sumaré em 1978
· Seminário do Alto da Boa Vista em 1984

Algumas características da REATUALIZAÇÃO DO CONSERVADORISMO:

· Subordinação às exigências da modernização conservadora
· Valorização da elaboração teórica
· Crítica à herança positivista e utilização da fenomenologia
· Ajuda psicossocial (viés psicologizante)
· Dissolução das determinações de classe nos processos societários
· Centralização nas dinâmicas individuais e recuperação de valores tradicionais
· Duplo combate: tendências da modernização; incidências da tradição marxista
· Intervenção em nível de microatuação

Algumas características da INTENÇÃO DE RUPTURA:

· Caráter de oposição ao regime autocrático burguês
· Cresce com a crise da autocracia burguesa
· depende de liberdades democráticas para avançar no seu processamento.
· Vinculação estreita com universidade
· bases sociopolíticas: democratização; movimento das classes exploradas
· elementos fundamentais: método BH; reflexão de Iamamoto (1982).

Método BH: proposição global de alternativa ao tradicionalismo, inaugurou – enquanto formulação de um projeto profissional que, respondendo à particularidade da conjuntura brasileira, estava sintonizado com as vanguardas renovadoras mais críticas da América Latina – a perspectiva da intenção de ruptura enfrentando as questões mais candentes da configuração teórica, ideológica e operativa que constituem uma profissionalidade como a do Serviço Social.

Iamamoto: compreender o significado social do exercício profissional em suas conexões com a produção e reprodução das relações sociais na formação social vigente na sociedade brasileira. Serviço Social inserido na dinâmica capitalista, à luz de uma inspiração teórico-metodológica haurida direta e legitimamente na fonte marxista. Com ela, as problemáticas internas da profissão encontram a base para um equacionamento novo e concreto; situa histórica e sistematicamente as questões de teoria, método, objeto e objetivos profissionais no âmbito que lhes é precípuo: o da profissionalidade que se constrói nos espaços da divisão sociotécnica do trabalho, tencionados pelo rebatimento das lutas de classes. Com a elaboração de Iamamoto, a vertente intenção de ruptura se consolida no plano teórico-crítico.