IAMAMOTO. CAPITAL FETICHE - CAP. 3

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Iamamoto, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2010.

Capítulo III- A produção teórica brasileira sobre os fundamentos do trabalho do assistente social

1. Rumos da análise

Estabelecer interlocução crítica com literatura profissional brasileira no que se refere aos fundamentos do trabalho do assistente social, elaborada nas décadas de 80 e 90 e aos anos 2000, que alimentou renovação do Serviço Social no Brasil e se reclama no amplo campo da teoria social crítica.

Recorte privilegiado refere-se às particularidades atribuídas à profissão na divisão social e técnica do trabalho do assistente social na atualidade. Pretende-se atribuir visibilidade aos diferentes ângulos a partir dos quais os autores analisam a natureza dessa profissão e o significado social de seu exercício no processo de produção e reprodução das relações sociais: as teses apresentadas, as fontes teóricas que condicionam o percurso e os resultados de suas elaborações. Busca-se identificar os avanços já obtidos, no marco da renovação crítica do Serviço Social brasileiro, referentes ao trabalho do(a) assistente social e, simultaneamente, apontar silêncios e omissões no legado acumulado, que possam instigar e enriquecer a agenda da pesquisa nessa área no que concerne ao trabalho profissional.

Reconhece-se a hegemonia que as interpretações de caráter histórico-crítico foram assumindo progressivamente na liderança do debate acadêmico-profissional brasileiro, a partir da década de 80.

O ponto de partida do debate é a concepção de profissão elaborada por Iamamoto na década de 80, submetida a um balanço crítico ante as novas condições sócio-históricas no trânsito do século XX para o XXI. Hipótese: Essa análise da profissão na divisão social e técnica do trabalho foi largamente incorporada pela categoria profissional, tornando-se de domínio público, o mesmo não ocorrendo com os seus fundamentos referentes ao processo de produção e reprodução das relações sociais, o que justifica a necessidade de sua retomada e aprofundamento, com foco privilegiado no trabalho e sociabilidade na ordem do capital, como subsídio para se pensar o exercício da profissão na atualidade.

Novidade: abrir diálogo fraterno, no interior de um mesmo campo político-profissional, com o intuito de fortalecimento e aprimoramento de um mesmo projeto profissional coletivamente partilhado. A novidade está no fato de que os interlocutores são parceiros – e não opositores – inscritos em um universo teórico soldado pela teoria social crítica – ou em áreas fronteiriças que se aproximam no campo político -, ainda que abordados sob diversas inspirações teóricas que vão desde o hegelianismo, ao amplo campo da tradição marxista: Marx, Lukács e Gramsci.

Nas duas últimas décadas, a restrita mas fecunda literatura profissional no âmbito da renovação crítica do Serviço Social voltada aos fundamentos do profissão – em suas dimensões históricas, teórico-metodológicas e éticas – tratou, sob diferentes ângulos, da natureza particular da profissão na divisão social e técnica do trabalho e sua dimensão ética.

Hipótese: Essa literatura centrou-se predominantemente nas particularidades do Serviço Social, enquanto trabalho concreto, segundo focos distintos: as origens da profissão na expansão monopolista e o sincretismo (Netto, 1991b, 1992, 1996); a identidade e a alienação (Martinelli, 1989); as políticas sociais, as relações de força, poder e exploração (Faleiros, 1987a, 1987b, 1999a); a proteção e a assistência social ( Costa, S. G. 2000; Yasbek, 1993, 1998); a hegemonia e a organização da cultura (Simionato, 1995; Abreu, 2002). Entretanto, a análise do processamento do trabalho do assistente social não adquiriu centralidade e nem foi totalizado nas suas múltiplas determinações, estabelecendo-se uma frágil associação entre os fundamentos do Serviço Social e o trabalho profissional cotidiano.

Restritos investimentos no acervo das determinações atinentes à mercantilização dessa força de trabalho especializada, inscrita na organização do trabalho coletivo nas organizações empregadoras, dificultam a elucidação de seu significado social – enquanto trabalho concreto e abstrato – no processo de produção e reprodução das relações sociais, no cenário da sociedade brasileira contemporânea.

Parte-se do suposto de que a identificação da particularidade dessa atividade profissional na divisão social e técnica do trabalho social não se esgota na indicação do valor de uso dos serviços prestados, da qualidade do trabalho realizado. Ela também é portadora de trabalho humano indiferenciado, trabalho humano abstrato, analisado na óptica de sua quantidade, parte do trabalho social médio, que participa na produção e/ou distribuição da mais-valia socialmente produzida e na luta pela hegemonia entre forças sociais.

Transitar da análise da profissão para o seu efetivo exercício agrega um complexo de novas determinações e mediações essenciais para elucidar o significado social do trabalho do assistente social – considerado na sua unidade contraditória de trabalho concreto e abstrato – enquanto exercício profissional especializado que se realiza por meio do trabalho assalariado alienado. Esta condição sintetiza tensões entre o direcionamento que o assistente social pretende imprimir ao seu trabalho concreto – afirmando sua dimensão teleológica e criadora -, condizente com um projeto profissional coletivo e historicamente fundado; e os constrangimentos inerentes ao trabalho alienado que se repõem na forma assalariada do exercício profissional.

Em síntese: a análise do trabalho profissional supõe considerar as tensões entre projeto profissional e alienação do trabalho social no marco da luta da coletividade dos trabalhadores enquanto classe.

Um balanço crítico de Relações Sociais e Serviço Social no Brasil

Iamamoto reconhece o rigor analítico da exposição da teoria de Marx e a atualidade do eixo metodológico que trata a tensão necessária entre a realidade e as formas sociais de que se revestem os fenômenos na empiria da vida social. Ela condensa os dilemas da exploração do trabalho e dos mecanismos mistificadores de sua legitimação, enfeixada no trato essencial da alienação do trabalho, esquecido no debate contemporâneo.

O tema da alienação permite atestar o radical humanismo histórico do pensamento de Marx e é o mais importante fio de continuidade com a produção atual de Iamamoto.
A obra contém uma precisa abordagem da mercadoria em suas tensões internas entre valor de uso e valor, articulando a óptica da qualidade e da quantidade, da particularidade e da universalidade, do trabalho útil e abstrato.

Um foco central, a noção mesma de produção e reprodução das relações é submetida a um tratamento rigoroso na acepção de Marx. Esse parece ser um tema que expressa um dos “nós cegos” presentes no debate atual. É freqüente a tendência de se estabelecer, no nível da análise, uma muralha entre “esfera da produção – aprisionada nos muros fabris – e a da produção, reduzida à reprodução de um dos elementos da produção, o seu componente subjetivo, a força de trabalho, pela via do consumo de bens e serviços. Daí a reiterada afirmativa de que o Serviço Social se situa na esfera da reprodução, como conseqüência dessa interpretação empobrecida daquelas categorias analíticas.

Ao se discutir hoje a relação entre trabalho e Serviço Social, é possível identificar na obra em questão os fundamentos do debate sobre processo capitalista de trabalho, em seus elementos materiais e subjetivos que são universais, e nas características particulares que assume sob a órbita do capital.

O texto alerta sobre o perigo de redução do processo de produção ao processo de trabalho nos seus elementos simples – meios de trabalho, objeto e a atividade humana -, desvinculado de suas implicações na órbita da produção do valor e, eventualmente, da mais-valia, o que se encontra na raiz da mistificação do capital. Risco presente no debate atual, que pode resvalar para uma abordagem que reifique as relações sociais, comprometendo a historicidade das análises, ao considerar, unilateralmente, o substrato material do valor do capital: as coisas em que se expressa, isoladas das relações sociais por meio das quais ocorre a produção.
Risco de restringir a abordagem do processo de trabalho à óptica do valor de uso (ao trabalho útil, concreto) desvinculando-o de suas implicações na órbita do valor (do trabalho humano abstrato), ou seja, das relações sociais por meio das quais se efetiva, indissociável das formas de propriedade em que se inserem.
Livrando-se desses descaminhos, o texto sustenta que o caráter de capital, impresso às mercadorias e ao dinheiro desde a circulação, decorre do fato de que as condições de produção e os meios de subsistência encontram-se alienados do trabalhador e o enfrentam como coisas capazes de comprar pessoas, o que caracteriza essencialmente o capital como relação social.

A exposição sobre a reprodução das relações sociais apresenta os fundamentos da questão social no modo de produção especificamente capitalista, ao abordar a população sobrante no interior mesmo da lei de acumulação.

O texto identifica a particularidade do regime capitalista de produção, no qual a existência de uma superpopulação trabalhadora disponível, independe dos limites reais de crescimento da população, é fruto do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social. A população trabalhadora excedente é, portanto, produto da acumulação e uma das condições para seu desenvolvimento, uma vez que a oferta e demanda de trabalho, em condições absolutamente favoráveis ao capital, contribui na regulação do movimento geral dos salários.

É essa a explicação proposta sobre a gênese da questão social, cuja configuração depende da situação objetiva das classes trabalhadoras historicamente situadas ante as mudanças verificadas no modo de produzir e apropriar o trabalho excedente. Ela depende, ainda, da capacidade de luta e organização dessas classes na defesa de seus interesses de classe e de sua sobrevivência, assim como as diversas maneiras de interpretar e agir sobre ela propostas pelo bloco do poder, com o apoio do Estado.
Na opinião de Iamamoto, além da pesquisa histórica propriamente dita, que não foi superada e abriu inéditos caminhos para outras investigações sobre o tema, a afirmação do caráter contraditório do exercício profissional foi uma das principais contribuições desta obra no debate sobre o Serviço Social brasileiro. Expressa uma ruptura com as análises unilaterais que situavam o Serviço Social exclusivamente na órbita ora dos interesses do capital, ora dos trabalhadores.

A tese do sincretismo e da prática indiferenciada

Uma das mais expressivas contribuições para a renovação crítica do Serviço Social brasileiro é de autoria de Netto (1991b, 1992, 1996) (Ditadura e Serviço Social, Capitalismo Monopolista e Transformações Societárias, respectivamente).

Elaborada com fina sustentação teórico-metodológica e profundamente enraizada na história do país, na dinâmica da expansão monopolista mundial, ela é responsável por uma culta interlocução da profissão com o pensamento social na modernidade e, especialmente, com representantes clássicos e contemporâneos da tradição crítico-dialética. Poder-se-ia afirmar que, animada por uma vocação histórica exemplar, a tônica que singulariza essa análise é o privilégio da esfera da cultura ou, mais especificamente, da crítica ideocultural, como dimensão constitutiva da luta política pela ruptura da ordem burguesa.

Maior polêmica entre os interlocutores Iamamoto e Netto – o sincretismo da prática do trabalho do assistente social. A crítica, sem concessões em torno dessa formulação historicamente datada, é acompanhada do reconhecimento da ultrapassagem, na produção subseqüente do autor, da maior parte dos impasses identificados.
Netto propõe-se a elucidar o estatuto teórico da profissão e identificar a especificidade da prática profissional até os anos 60 do século XX, considerando uma dupla determinação: as demandas sociais e a reserva de forças teóricas e prático-sociais acumuladas pelas assistentes sociais, capazes ou não de responder às requisições externas. Esse percurso tem como centro o sincretismo, traço transversal da natureza do Serviço Social, desbordando-se na caracterização da prática profissional e dos seus parâmetros científicos e ideológicos.

O autor considera a natureza socioprofissional medularmente sincrética, posta a carência do referencial crítico-dialético. Esse pressuposto merece atenção, pois condiciona toda a análise da profissão enfeixada na problemática da reificação, terreno em que os processos sociais se mostram na sua fenomenalidade, o que justifica o sincretismo, enquanto princípio constitutivo da natureza da profissão.
Pressupondo a ausência de uma abordagem histórico-crítica, a estrutura sincrética do Serviço Social tem seus fundamentos na: a) questão social, núcleo das demandas histórico-sociais que se apresentam à profissão; b) no cotidiano, como horizonte do exercício profissional; e c) na manipulação de variáveis empíricas, enquanto modalidade específica da intervenção.

Como o sincretismo figura como a face aparente da totalidade do ser social, a natureza da profissão na sociedade burguesa madura é estabelecida a partir da sua fenomenalidade – aprisionada em sua indissociável reificação -, pressupondo a ausência de referencial crítico dialético.

Restringir o universo da análise do Serviço Social às formas reificadas de manifestação dos processos sociais, ainda que esse procedimento possa prevalecer no universo profissional, denuncia a mistificação, mas não elucida a natureza sócio-histórica dessa especialização do trabalho para além do universo alienado, em que se realiza e se mostra encoberta no sincretismo. Em outros termos, o esforço de desvendamento, ainda que essencial, torna-se parcial e inconcluso.

Há um estranho silêncio sobre a política, como instância de mediação da relação do homem com sua genericidade na análise de Netto (a qual sempre teve centralidade em sua vida pública), torna opaca, neste texto, a luta de classes na resistência à sociedade do capital. Isso deriva numa visão cerrada da reificação – forma assumida pela alienação na idade do monopólio – e a alienação tende a ser apreendida como um estado e menos como um processo que comporta contratendências, porque as contradições das relações sociais são obscurecidas na lógica de sua exposição.
Após caracterizar o sincretismo no Serviço Social, Netto desdobra-o nos níveis da prática indiferenciada, do sincretismo científico e do sincretismo ideológico. As análises de Netto acerca do sincretismo ideológico – focando a trajetória da influência conservadora européia e norte-americana na cultura profissional – e acerca do sincretismo científico – abordando o embate teórico-metodológico entre as ciências sociais e a teoria social – são ricas.

Entretanto, sobre o sincretismo da prática indiferenciada, Iamamoto apresenta críticas. Mantida a ausência de uma concepção teórica crítico-dialética, a estrutura sincrética tem sido debitada à peculiaridade operacional do Serviço Social enquanto prática, cuja profissionalização alterou a inserção sócio-ocupacional do assistente social (e o próprio significado social do seu trabalho), mas pouco feriu a estrutura da prática profissional interventiva, em comparação com a prática filantrópica. Ainda que tenha surgido um ator novo cuja prática passa a ser referenciada a um sistema de saber e enquadrada numa rede institucional, de fato, a intervenção não se alterou: mantém-se pouco discriminada, com referencial nebuloso e inserção institucional aleatória.

O que o autor vai acentuar e colocar como centro de sua análise é a aparência indiferenciada que se reveste a prática profissional, isto é, a manutenção de uma mesma estrutura da prática interventiva no tocante à sua operacionalidade, similar às suas protoformas. Ainda que reconheça que há um novo significado social para o trabalho profissional, uma vez que opera o corte com a filantropia, à medida que o Estado, na expansão monopolista, passa a centralizar e administrar as respostas às refrações da questão social, via políticas públicas.

A explicação da tese apresentada passa por dois vetores: a) as condições para a intervenção na sociedade burguesa marcada pela positividade ou pseudo-objetividade; b) a funcionalidade do Estado no confronto das refrações da questão social. Essas condições, que extrapolam a prática profissional, aparecem como se fossem limites endógenos ao Serviço Social.

O primeiro aspecto, que justifica a tese da manutenção da prática indiferenciada, diz respeito ao fato de que sua eficácia permaneceu circunscrita a manipulação de variáveis empíricas no rearranjo da organização do cotidiano, não rompendo com a imediaticidade que o impregna.

Outro vetor que contribui para o sincretismo da prática refere-se às políticas sociais estatais, incapazes de resolver a questão social, visto que só podem repor, em bases ampliadas, suas manifestações, cronificando-as. Sendo o desempenho profissional indissociável das políticas sociais, o máximo que consegue é a racionalização de recursos e esforços para o enfrentamento das refrações da questão social. Esse é o anel de ferro que aprisiona a profissão, não lhe permitindo ir além de suas protoformas.

Entretanto, deve-se notar que se as políticas sociais não têm o poder de fazer a eversão da questão social erradicando-a, também é certo que elas viabilizam direitos sociais, frutos de longo processo de lutas históricas dos trabalhadores pelo seu reconhecimento político. E elas também se aliam a iniciativas do bloco dominante na concessão de direitos, antecipando-se às reivindicações oriundas de diferentes segmentos sociais, segundo estratégias de desmobilização das lutas sociais. O campo das políticas públicas e dos direitos sociais é, também, uma arena de acumulação de forças políticas de lutas em torno de projetos para a sociedade no enfrentamento das desigualdades condensadas na questão social.

Em texto mais recente, Netto (1996), sem retornar à tese sobre o sincretismo da prática indiferenciada, apresenta uma análise primorosa sobre as incidências das transformações societárias no capitalismo tardio.

Ao se estabelecer um contraponto entre o debate sobre o sincretismo e o último texto referido, pode-se perceber uma clara inflexão no tratamento da prática profissional. Ela se apresenta, no ensaio mais recente, inteiramente polarizada pela política e tensionada por projetos de classes para a sociedade. É tratada como instância decisiva para assegurar a hegemonia da ruptura com o conservadorismo e alargar as bases sociais de legitimidade do Serviço Social junto às classes subalternas. A profissão passa a ser tratada como um campo de lutas, em que os diferentes segmentos da categoria, expressando a diferenciação ideopolítica existente na sociedade, procuram elaborar uma direção estratégica para a sua profissão.

A centralidade assumida pelas respostas profissionais, de caráter teórico-prático, às demandas emergentes – expressão das transformações vividas pela sociedade nas últimas décadas – mostra um estatuto profissional aberto a novas possibilidades, o que contrasta com o circuito fechado que informava a análise da fenomenalidade da prática no debate sobre o sincretismo.

Entretanto, os fundamentos do sincretismo, tais como antes apresentados pelo autor, se mantêm enquanto determinantes indissociáveis do ordenamento social sob a égide do capital.
Logo, existem inflexões entre as abordagens sobre a “prática profissional”, nos dois tempos da produção do autor. O diferencial está na saliência da dimensão contraditória das relações sociais e, consequentemente, das respostas profissionais no seu âmbito – não apenas enquanto um braço da reprodução da lógica reificada do capital -, mas permeáveis a uma direção estratégica contra-hegemônica. A profissão é atravessada pela luta de classes, o que comparece diluído na elaboração anterior. Essa inflexão não pode ser debitada apenas à presença de bases sociais da categoria voltadas a uma direção social estratégica contra-hegemônica informada pela tradição marxista, responsável pela renovação da cultura profissional.

Hipótese: há nesse segundo momento, uma revisão do sincretismo da prática indiferenciada, ainda que não explicitada pelo autor. Ela é tributária da análise do processo de reprodução social saturado de contratendências, tal como expresso na lógica da construção do texto, inteiramente permeado pelos dilemas contraditórios da história do tempo presente.

Netto não desdobra sua análise para as múltiplas determinações que forjam a efetivação do exercício profissional no mercado de trabalho, mediado pelo trabalho assalariado, o que não adquire proeminência nos seus ensaios; ainda que atribua a ele um lugar decisivo na fundação da profissionalização do Serviço Social, distinguindo-o das protoformas materializadas nas atividades nas atividades filantrópicas.

É por meio do estatuto assalariado que se abre às organizações patronais o poder de ingerência nos objetivos, conteúdos, princípios e instrumentos técnico-operativos do trabalho profissional, subsumindo dimensões importantes em relação ao conteúdo da atividade e da cultura profissional aos seus propósitos e funções, em tensão com a autonomia profissional, legalmente resguardada. Por outro lado, como os empregadores detêm recursos financeiros, materiais e humanos que respaldam a realização das ações profissionais, estabelecem critérios de prioridade e recortam as expressões da questão social e os sujeitos que as portam como público alvo da prestação de serviços profissionais. Os empregadores interferem, ainda, na definição de cargos e salários, jornada, critérios de produtividade, a serem observados, que esbatem na dinâmica técnico-operativa do trabalho, estabelecendo limites e possibilidades à efetivação de um projeto profissional coletivo e agregando um conjunto de particularidades na forma de sua implementação.

O efeito da atividade profissional no processo de reprodução das relações sociais não decorre apenas do seu “modo de operar”, que, segundo o autor, historicamente pouco se diferenciou das atividades similares que antecederam essa profissionalização; mas sim de sua funcionalidade social, indecifrável se pensada como atividade do indivíduo isolado, porque depende dos organismos aos quais se vincula e das relações sociais que lhe dão vida.

Deve-se considerar a mercadoria força de trabalho do assistente social, como unidade de valor de uso e valor, o que não cabe no universo da produção em tela. Ela considera a profissão de natureza ideo-política, não incorporando de forma transversal na análise a categoria trabalho tal como se expressa na sociedade capitalista, ainda que o trabalho do assistente social seja citado em inúmeras ocasiões ao longo dos textos referidos.
A Tese da Identidade Alienada
Martinelli (1989) traz pioneiramente ao debate o tema da “identidade e alienação no Serviço Social”, com o propósito último de descobrir os nexos de articulação entre o capitalismo e a profissão, ou seja, “compreender o real significado da profissão na sociedade do capital e sua participação no processo de reprodução das relações sociais.
O texto apresenta a trajetória da racionalização da assistência social e das origens e desenvolvimento do Serviço Social no seu âmbito, sob o signo da “ilusão do servir”, parte das iniciativas da burguesia, da Igreja, do Estado para o controle social da classe operária e enfrentamento da acumulação da pobreza. O propósito deste livro é identificar os óbices e as possibilidades para o desenvolvimento da identidade profissional e da consciência social dos assistentes sociais.
Sob nítida influência de Hegel, a autora formula seu objeto de estudo: O Serviço Social existente em si e em suas relações com a sociedade capitalista, em que teve sua origem e desenvolvimento como prática institucionalizada.
Seu pressuposto é que existiria uma identidade da profissão em si mesma, considerada como elemento definidor de sua participação da divisão social do trabalho e na totalidade do processo social. A tese supõe uma identidade em si, estabelecida idealmente como identidade verdadeira, que se perdeu nas origens e desenvolvimento do Serviço Social, tendo sido maculada na história, visto que a burguesia assume progressivamente o controle dessa prática profissional, transformando-a em uma estratégia de domínio de classes. A identidade dos agentes é consumida pela burguesia, plasmada artificialmente como uma identidade da profissão e incorporada pelos seus agentes.
Sua hipótese é que a ausência de identidade profissional fragiliza a consciência social da categoria profissional, determinando um percurso alienado, alienante e alienador da prática profissional, impedindo a categoria de ingressar no universo da consciência em si e para si do movimento operário, ou seja, assumir coletivamente o sentido histórico da profissão.
Suposto é claro: haveria um sentido histórico da profissão, que afirmaria a identidade da profissão em si e para si mesma: assumir a consciência em si e para si do movimento operário, procedendo assim, a ruptura com o que Hegel denomina de consciência infeliz, ou seja, a alma alienada, que é a consciência de si como natureza dividida.
Os resultados foram práticas burocráticas, alienadas e reducionistas, destituídas de referencial histórico-crítico, acompanhadas de ausência de laços de solidariedade entre pares e com outras categorias profissionais. E como o assistente social não tomava consciência das contradições que o envolviam, não tinha como superá-las. Para a autora comentada, a negação da identidade atribuída e a superação da alienação seriam possíveis, pela via de ruptura do Serviço Social com suas origens burguesas.
A ruptura da alienação por parte dos profissionais aparece, no texto, como uma função do pensamento crítico reflexivo, através do qual criações fetichizadas do mundo reificado se dissolvem e perdem sua enganosa fixidez, permitindo que se revele o mundo real, ocultado pela representação aparente. Nos momentos de crise, se expande a base crítica da consciência social dos agentes, através da ruptura com a alienação, e eles tomam consciência do caráter conservador de suas práticas.
Há que considerar a época desta publicação – final dos anos 80 – o que condiciona a ambientação da análise, influenciada pelos dilemas presentes no código de ética de 1986, que superestima a dimensão política da profissão.
Nessa obra, a autora constrói sua tese inspirada nas complexas noções de consciência de classe e alienação do trabalho, cuja apropriação pode ser discutida, transitando-as, sem as devidas mediações, para outro universo: o da profissão. Observa-se uma transposição imediata das noções de classe em si e para si para uma categoria profissional, que é tratada teoricamente com o mesmo estatuto histórico de uma classe social.
A autora transfere para o Serviço Social, sem as devidas mediações, os dilemas do papel histórico da classe operária, o que se encontra na raiz de impasses centrais observados no texto. Daí o suposto idealista de que caberia necessariamente à profissão, em sua inserção na divisão do trabalho, assumir a consciência em si e para si do movimento operário – o que no texto, parece se aproximar de uma exigência de ordem moral – tida como forma de ser da identidade verdadeira do assistente social, que lhe permitiria estabelecer os nexos de sua prática com a totalidade do processo social.
A profissão teria uma missão, que lhe foi “roubada” pelo poder dominante, visto que o capitalismo lhe impôs uma identidade atribuída de fora. A historicidade da profissão é metamorfoseada em perversidade do capital, que produz uma deformação de origem: a incorporação da prática profissional ao projeto hegemônico da burguesia.
Na obra de Martinelli em debate, apesar de se evocar a história de lutas do movimento operário, o trabalho, como dimensão ontológica central da constituição do ser social – um ser prático-social – não adquire centralidade na construção e demonstração da hipótese norteadora da análise. Nela, a centralidade é deslocada para a esfera da consciência.
Aspecto a destacar na análise desta tese: monolitismo com que é tratada a categoria profissional. A elaboração descarta a dimensão a dimensão socialmente contraditória do Serviço Social (ainda que declarada no texto), em favor da dualidade: a identidade aparece, num primeiro momento, produzida pela cultura dominante e sem nenhum potencial de transformação da realidade; e, num segundo momento, tendo por suposto a ocorrência da ruptura com a alienação e com suas próprias marcas burguesas de origem, a identidade profissional surge inteiramente comprometida com a luta social pela transformação da realidade. Assim comparecem traços ora fatalistas, ora messiânicos que obscurecem as tensões e contradições do objeto em questão.
A ruptura com a identidade alienada, alienante e alienadora de parte dos agentes profissionais é, fundamentalmente, uma atividade da consciência crítica e não da prática política. Inexiste qualquer referência ao partido, enquanto intelectual coletivo, nos termos de Gramsci.
A afirmação da consciência como motor de transformação consagra uma inversão da crítica de Marx e Engels à filosofia neo-hegeliana alemã: Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.
A ilusão de Hegel era a de que as idéias produziam, determinavam e dominavam o mundo real, sendo os verdadeiros grilhões dos homens. Portanto, a luta se restringia à transformação da consciência.
A Tese da Correlação de Forças
Um dos expoentes de maior peso do movimento de reconceituação do Serviço Social latino-americano – no embate crítico com a concepção funcionalista no Serviço Social – foi Vicente de Paula Faleiros. Pretende-se salientar a produção do autor referente ao Serviço Social, em especial sua tese referente à natureza da profissão e ao exercício profissional.
Seu traço distintivo é a preocupação com as relações de poder, que se desborda em uma importante e pioneira contribuição na temática da política social, considerado o campo em que se situa a profissão. É por meio da questão do poder que se pode encaminhar a análise da prática do Serviço Social. O eixo central de sua abordagem é a relação do Serviço Social com a política, introduzindo as noções gramscianas de “hegemonia” e “intelectual” no Serviço Social brasileiro.
Os textos mais antigos apresentam uma linha teórica mais nitidamente fundada na tradição marxista que as produções mais recentes. Nestas pode-se observar tanto um elo de continuidade com aquela tradição quanto o recurso mais intenso e freqüente a um conjunto de autores com filiações teóricas de diferentes matizes.
Sua concepção sobre a profissão foi sistematizada no paradigma das relações de força, poder e exploração, também denominado paradigma da articulação. O autor estabelece divisor de águas com o paradigma das relações interpessoais, que prevaleceu das origens do Serviço Social até a reconceituação.
Faleiros preconiza uma visão política da intervenção, que articule o geral e o particular, parte da luta por novas relações sociais em todas as dimensões da vida em sociedade. As relações entre a clientela dos serviços sociais, a instituição e o profissional são abordadas como parte das relações de classe.
A noção de poder é tratada a partir de sugestões de Gramsci, acopladas a elaborações de M. Foulcault sobre os micropoderes dos aparatos institucionais.
O assistente social é concebido como um intelectual orgânico, podendo contribuir para uma nova correlação de forças, uma nova hegemonia: como consenso das classes dominadas e capacidade que a classe operária tem de conquistar a consciência de seus aliados na formação do novo bloco histórico. Essa linha de análise abriu caminho a novas ações, a partir do lugar de trabalho dos profissionais, situando a ação profissional concreta em uma perspectiva política.
Segundo essa acepção, o objeto do trabalho do assistente social é uma questão disputada, um objeto de luta formado pelas relações de força, de poder e de saber para a conquista pelas classes subalternas de lugares, recursos, normas e espaços ocupados pelas classes dominantes.
Faleiros defende a tese que o Serviço Social, como produto da sociedade, consiste na mediação entre a produção material e a reprodução do sujeito para essa produção e na mediação entre a representação do sujeito nessa relação.
O resgate da identidade implica considerar manifestações da cultura e da ideologia, a mediação com o poder, processos sócio-afetivos, mitos, sentimentos. Supõe, portanto, a relação entre o sentir e o compreender numa determinada situação histórica, nas palavras de Gramsci, o que envolve o intelectual e o povo.
Nessa análise, a categoria profissional é tratada como intelectual orgânico vinculado aos interesses do trabalho, aquele que opera a mediação entre a representação e a reprodução, elidindo a clivagem de classe que também se expressa no interior da categoria. O assistente social é visto como o intelectual que opera a mediação entre a representação e a reprodução, embora nesse processo intervenham inúmeras outras forças sociais, as quais não têm a devida visibilidade, como os partidos, as igrejas, os sindicatos, além dos aparatos de coerção estatal.
Para o autor, a relação do assistente social com a população se processa no campo da política do cotidiano, isto é, nas relações entre mudanças societárias e aquelas que têm lugar na vida cotidiana. Elas implicam relações de saber e de poder voltadas à superação de um problema, o que requer estratégias de saber e de poder voltadas à superação de um problema, o que requer estratégias e táticas voltadas à articulação de novas relações dos sujeitos entre si e com a estrutura para operar mudanças na situação apresentada.
A preocupação do autor com as relações entre sujeito e estrutura desdobra-se, atualmente, para situar, no marco do paradigma da correlação de forças, o empowerment como objeto do Serviço Social.
Sabe-se da ambígua e polissêmica noção de empowerment – que abrange a ênfase psicológica, a comunitária, o discurso a favor do oprimido, entre outros – carrega forte conotação liberal, centrada no interesse do indivíduo presente nas lutas pelos interesses civis.
Trata-se de uma noção teórica estranha à teoria social crítica e ao método que lhe é inerente, ainda que, para Faleiros, o esforço de sua ressignificação se coadune com a inspiração gramsciana.
Faleiros preocupa-se em superar as dicotomias entre estrutura e sujeito e é um dos estudiosos que privilegia as mediações envolvidas no exercício profissional: seus determinantes institucionais, as estratégias e táticas na ação profissional, a relação entre profissionais e usuários dos serviços, entre outros aspectos.
A Tese da Assistência Social
A política pública de assistência no marco da seguridade social tem sido um dos âmbitos privilegiados de atuação profissional e um dos temas de destaque no Serviço Social brasileiro recente.
Do fecundo espectro de produções recentes sobre a assistência e proteção social foram priorizadas aquelas que estabelecem um explícito vínculo com o Serviço Social, trazem inéditas contribuições e/ou tiveram explícita incidência na polêmica sobre a profissão.
No livro Classes subalternas e assistência social, Yazbek (1993) faz uma interlocução com estudos sobre a pobreza brasileira e seu enfrentamento pela via das políticas sociais públicas, com ênfase na ação do Estado, privilegiando os impactos dessas políticas sobre a população-alvo dos serviços assistenciais.
Novidade que esta obra anuncia é a abordagem da assistência na óptica dos de baixo, salientando os impactos dessa política na sua materialidade e subjetividade do homem simples, nos termos de Ianni (1975), alvo das ações profissionais envolvidas nessa política pública, que têm tido pouca visibilidade na literatura especializada. Nesta, a abordagem do tema tendeu a privilegiar a óptica da ação do Estado e do capital.
A autora traz uma contribuição original para pensar a particularidade do Serviço Social tendo como fulcro a assistência social na conformação da identidade das classes subalternas. A profissão é vista como uma intervenção mediadora na relação do Estado com os setores excluídos e subalternizados da sociedade, situada no campo das políticas sociais e assistenciais na concretização da função reguladora do Estado na vida social.
Outro fator distintivo da citada elaboração, fundada sob o prisma das relações de classe e seus conflitos, é a apreensão do caráter contraditório das políticas sociais – em particular, da assistência – e do Serviço Social no seu âmbito – no enfrentamento à questão social, fio transversal que atravessa toda a análise. Essas políticas reproduzem a luta mais geral da sociedade e as contradições e ambigüidades que permeiam os diversos interesses em contraposição.
Sendo a assistência uma das dimensões em que se imbricam as relações entre as classes e destas com o Estado, ela abrange o conjunto de práticas que o Estado desenvolve de forma direta ou indireta junto às classes subalternizadas, com sentido aparentemente compensatório de sua exclusão, conformando-se como um campo de acesso a bens e serviços. Enquanto estratégia contraditória da gestão estatal da pobreza das classes subalternas, o assistencial é, na óptica do Estado, um mecanismo de estabilização social e, para os segmentos subalternos, uma forma de acesso a recursos e serviços, parte da gestão estatal da força de trabalho. Entretanto, a assistência também abre um espaço do resgate do seu protagonismo na luta pelo reconhecimento dos direitos de cidadania, atribuindo às demandas dos subalternos uma legimitidade pública.
A população-alvo das políticas de assistência social (e, consequentemente do Serviço Social) é lida a partir da categoria de subalterno. Incorpora a perspectiva gramsciana de classes subalternas, tida como mais rica que a de trabalhador, uma vez que expressa não apenas a exploração, mas a dominação e a exclusão econômica e política.
Entretanto, na obra comentada, a noção de exclusão integrativa não envolveu o enfrentamento teórico da lei geral da acumulação e sua correspondente lei da reprodução da população. Com base em tais parâmetros, Yazbek propõe integrar à óptica de classe as noções de exclusão e subalternidade, tidas como dela indissociáveis para pensar o segmento alvo da assistência social.
O propósito da autora de atribuir visibilidade à experiência e auto-representações dos assistidos, quanto à política de assistência social, leva-a a enfrentar o difícil e polêmico debate sobre as representações sociais no campo da tradição marxista. Incorporando sugestões de autores diferenciados dessa tradição intelectual, concebe as representações como organização significante do real para os que a vivenciam abordadas como constitutivas do próprio ser social, seu modo de pensar e interpretar a realidade cotidiana, parte da subjetivação da realidade objetiva e também da ideologia que justifica essa realidade e oculta relações de poder.
Yazbek reconhece a posição secundária que a assistência social vem tradicionalmente ocupando nas políticas públicas, com ações tangenciais às demais políticas e terreno fértil ao clientelismo.
Dúvida se o potencial de cidadania atribuído a essa política pode ser decisivamente preenchido no seu âmbito. Haja vista a pesquisa da autora – que apontou que a via assistencial tem sido um reforço da subalternidade – e as dificuldades de representação dos usuários nos Conselhos de Assistência, tal como se constata após mais de uma década de implantação da LOAS.
A assistência tem sido uma mediação fundamental para o exercício profissional, segundo a autora.
A aparência de efetuar uma concessão de benefícios – e não de viabilização de direitos tem resultado em reiteração da subalternidade.
O assistente social, reconhecido como profissional da assistência, insere-se no interior dos equipamentos sócio-assistenciais como mediador entre Estado, instituição e classes subalternas no atendimento aos segmentos empobrecidos e subalternizados.
Existe uma fina sintonia entre a concepção de profissão no processo de reprodução das relações sociais – e o conseqüente caráter contraditório da profissão nesse processo e a análise de Serviço Social assumida por Yazbek. Mas a ênfase na tese da assistência é umas marca distintiva e original das suas elaborações.
A Tese da Proteção Social
No contraponto à tese da política pública da assistência social como distintiva da particularidade da profissão, a tese da proteção social de Sueli Gomes Costa (1995) marcou presença no debate nacional sobre a formação profissional com incidências na pós-graduação.
A proteção social, enquanto campo teórico de interesse profissional, é apresentada por Costa como fio analítico para o exame do Serviço Social e das transformações operadas na cultura profissional e um norte alternativo àquele impresso às diretrizes curriculares da área em meados dos anos 90.
Para a autora, o Serviço Social, desde os seus primórdios, é parte de processos civilizadores que incluem experiências e estados de consciência voltados para a proteção social. Sendo esta uma regularidade histórica de longa duração, em seu processo de continuidades e rupturas, revela muitos significados na vida humana. E foi da proteção social que os assistentes sociais sempre se ocuparam, o que demarca seu campo profissional.
Segundo Costa, a proteção social envolve múltiplas dimensões dos processos históricos, pois a vida humana não se move apenas por tensões interclassistas, sendo, a lutas de classes, um dentre muitos processos que a impulsionam. Essa concepção exige mudanças dos paradigmas envelhecidos, de que parecem tudo explicar – como, por exemplo, o da polarização entre classes sociais – nos quais não se sustenta a abordagem proposta.
Costa afirma seu alinhamento à corrente do pensamento marxista, mas repele a onipotência das explicações genéricas. Ela afirma abordar as regularidades históricas de outra forma, mais próxima ao pensamento antropológico.
O suposto que informa a crítica feita pela autora é o que dever colocado no centro do debate: o viés economicista da abordagem de Marx sobre a produção e, consequentemente sobre a reprodução.
Segundo Iamamoto, atribuir identidade entre Marx e o economicismo – entre a densidade histórica que impregna a formação das classes sociais e as determinações da economia em última instância que desbordam em dualidades simplistas e genéricas – é adensar a fogueira do antimarxismo, ainda que em nome do resgate das particularidades culturais.
A concepção de proteção social, apresentada por Costa, não a considera como política pública, pois não é disso que se trata, e sim, de experiências autogestionárias ou não de proteção social, que restaurem o aparato assistencial no interior das redes de solidariedade, integrando esfera pública e privada. A autora propõe como estratégia de um novo sistema de proteção social recompor o aparato assistencial com as redes de solidariedade e os grupos de auto-ajuda admitidos como capazes de conduzir as ações de defesa dos interesses coletivos.
Em tempos orquestrados pelas políticas neoliberais, pensar as práticas de proteção social exclusivamente nas chamadas relações intra-sociais, adstritas às convivências de indivíduos e grupos em situação de não-autonomia quanto a sua sobrevivência, pode servir aos interesses no poder: um alento ao discurso que faz ode à restrição da responsabilidade do Estado no campo das políticas públicas em resposta à questão social, em nome das iniciativas solidárias da sociedade civil, para as quais têm sido transferidas funções típicas de Estado.
A Tese da Função Pedagógica do Assistente Social
A influência do pensador italiano Antônio Gramsci no Serviço Social brasileiro já foi objeto de importantes pesquisas que resgatam dimensões de sua teoria, sua difusão no país e na literatura profissional, submetendo a um balanço crítico a produção do Serviço Social de inspiração gramsciana dos anos 80 e meados de 90.
Iamamoto elegeu o recente trabalho de Marina Abreu (2002) intitulado O Serviço Social e a Organização da Cultura, voltado à leitura dos perfis pedagógicos da prática profissional no País, para analisar.
Esta é uma obra que se destaca pela densidade e rigor teórico na interpretação das tendências dos processos históricos macroscópicos e do Serviço Social no seu âmbito, abordando, com originalidade, a constituição e tendências presentes no desenvolvimento do Serviço Social no Brasil.
O objetivo da obra é discutir a função pedagógica do assistente social mediada pelas políticas públicas – em especial a assistência social – e pelos processos organizativos e lutas das classes subalternas, inscrita nos processos de organização da cultura por parte das classes sociais. O Serviço Social, ao inscrever-se entre as “necessidades sociais” e os “sistemas de controle social”, constitui-se integrado “à afirmação da cultura dominante no campo das estratégias político-culturais de subalternização das classes detentoras da força de trabalho”. Ele apresenta perfis pedagógicos diferenciados ao longo da trajetória profissional: a “pedagogia da ajuda”, “a pedagogia da participação” e a “pedagogia emancipatória das classes subalternas”, que coexistem, refuncionalizadas, em disputa no cenário profissional contemporâneo.
A profissão vincula-se às citadas estratégias por meio das políticas públicas, das políticas de formação e gestão dos recursos humanos – nas instâncias da produção material, na circulação de mercadorias e distribuição da riqueza – e dos processos de luta e resistência das classes subalternas. As ações pedagógicas concretizam a ação material e ideológica no modo de vida, de sentir, pensar e agir das classes subalternas envolvidas nos espaços ocupacionais, interferindo na reprodução física e subjetiva dessas classes, ao mesmo tempo que rebatem na constituição do Serviço Social como profissão. Por meio dessas funções, o Serviço Social inscreve-se no campo da cultura, pensada a partir do fordismo e de sua correlata ideologia, o americanismo: padrão produtivo e de trabalho e a organização de uma ordem intelectual e moral pelas classes subalternas. O princípio educativo na formulação gramsciana consubstancia-se na relação entre racionalização da produção e do trabalho e na formação de uma ordem intelectual e moral, sob a hegemonia de uma classe.
Para Gramsci, as relações pedagógicas não se reduzem às relações escolares, pois cada relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica, estando essas relações inscritas na luta de classes pela hegemonia na sociedade.
A política de assistência social em seu caráter ressocializador é constitutiva dos processos de organização da cultura. Ela é vista como uma “modalidade de acesso do trabalhador a bens e serviços no atendimento de suas necessidades básicas, cujo componente material é referência determinante de determinada pedagogia”.
A tese da autora é que, na expansão monopólica, a função pedagógica do assistente social é indissociável “da elaboração e difusão de ideologias na organização da cultura”. Ela se realiza mediante estratégias que articulam interesses econômicos, políticos e ideológicos de uma classe, constituindo formas de pensar e agir próprias de determinado modo de vida em que a formação de subjetividades e as normas de condutas são elementos moleculares. A sustentação dessa proposta analítica enfrenta polêmicas sobre a interpretação de Gramsci quanto ao “Estado e sociedade civil” e “hegemonia” – referência necessária à explicitação da tese da autora e apreciação das tendências atuais da função pedagógica do assistente social.
O foco nos processos de organização da cultura desdobra-se na afirmação de que o assistente social emerge na sociedade capitalista como um “intelectual profissional do tipo tradicional”, a partir do argumento de que a profissão se enraíza em práticas de assistência social, que antecedem a sociedade capitalista. Essas práticas são redefinidas pelo capital no decurso da expansão monopolista no enfrentamento e neutralização das manifestações da classe trabalhadora, voltadas à defesa de seus interesses, o que requisita a profissionalização do Serviço Social.
Na óptica defendida por Iamamoto, a profissionalização do Serviço Social ocorre, exatamente, quando ele rompe com a tradicional filantropia e dela se distingue – passando com ela a coexistir – ao ser absorvido pelo aparato de Estado e segmentos patronais industriais na implementação de políticas voltadas à reprodução da força de trabalho e ao controle social das classes subalternas, o que viabiliza a constituição de um mercado de trabalho crescente para o assistente social.
Abreu reconhece que a partir dos anos 50 e 70, a função pedagógica do assistente social é polarizada por dois processos distintos, que nutrem a crise profissional: de um lado, o de formação do trabalhador fordiano no processo de organização do americanismo a que se acopla, posteriormente, o padrão cultural instaurado pelo Welfare State, tendo por base o conformismo mecanicista como princípio educativo, que se traduz no âmbito do Serviço Social na pedagogia da participação.
A derivação necessária dessa argumentação é a defesa do assistente social como um intelectual orgânico vinculado a um projeto de classe revolucionário de vocação socialista. Essa perspectiva re-atualiza o debate oriundo dos anos 80, que tornam fluidos os limites entre profissão e militância política revolucionária na defesa da sociedade socialista, porque equaliza inserções e dimensões diferenciadas vividas pelo assistente social, enquanto profissional assalariado e enquanto cidadão político, visto não ser a categoria politicamente homogênea, por tratar-se de uma especialização do trabalho na sociedade e não de uma atividade que se inscreva na arena da política stricto sensu. Esta última observação é um dos fulcros da diferença de interpretação da profissão com a autora, que tem o Serviço Social como uma forma de práxis.
Abreu identifica duas tendências no campo progressista da profissão, que se mostra cindido em nível das propostas estratégicas para a sociedade: uma tendência afirma o compromisso profissional com as lutas das classes subalternas pela defesa dos direitos civis, sociais e políticos, da democracia e da justiça social nos limites da tendência que consubstanciou a experiência do chamado Estado de Bem-Estar, muitas vezes apresentadas com o fim último da intervenção profissional, o que, nos termos de Antunes, traduz uma acomodação de interesses dentro da ordem.
Outra tendência, esta defendida pela autora, estabelece o compromisso profissional com as lutas das classes subalternas no sentido da superação da ordem burguesa e construção de uma nova sociedade – a socialista – a qual supõe a ultrapassagem das lutas no campo dos direitos, nos limites da chamada democracia burguesa.
A função pedagógica do assistente social voltada à emancipação das classes subalternas, na análise efetuada, tem sua sustentação sócio-histórica apoiada em um estreito arco de forças sociais organizadas.
Essas indicações sugerem dois feixes de questões: a) a formulação do perfil pedagógico emancipatório do assistente social, enquanto norte defendido para a profissão, no contexto brasileiro, está restrito a um segmento minoritário das classes subalternas, altamente politizado e solidário a um projeto socialista da sociedade. Um projeto profissional fundado exclusivamente nessas bases sociais – que não dispõem de ampla representatividade nas condições efetivas em que opera o exercício da profissão – apresenta-se como um “dever ser” distante da diversidade sociopolítica que conforma a categoria; b) faltam mediações efetivas na análise da profissão e de seu exercício, em decorrência da perspectiva teórica adotada.
Na perspectiva adotada por Iamamoto, é necessário re-situar na análise o caráter contraditório da profissão, extraindo dele efetivas conseqüências para a análise das funções tradicionais e emergentes do assistente social nas experiências vigentes no mercado de trabalho. Considerando as possibilidades diferenciadas de autonomia que dispõe o assistente social nos vários espaços ocupacionais e a força dos interesses sociais distintos que neles se refratam, a efetivação de um projeto profissional não pode depender de uma seleção de tipos seletivos de práticas; mas da direção social e política impressa ao trabalho nos diferentes espaços ocupacionais, consoante os limites e possibilidades de um fazer profissional que, embora denso de conteúdo político, distingue-se da arena da militância política.
À medida que o texto em debate pauta-se pela leitura do exercício profissional como uma dimensão da práxis, as determinações que atribuem uma particularidade ao trabalho do assistente social – exercido por meio do estatuto assalariado – que forja as condições em que essa especialização do trabalho se inscreve na reprodução das relações sociais – são obscurecidas e secundarizadas. Elas estabelecem limites, socialmente objetivos, à efetivação dos rumos projetados mais além da vontade tanto dos profissionais individuais quanto da categoria, enquanto coletividade.
Hipótese: o núcleo do impasse da elaboração de Abreu está na leitura da profissão na história da sociedade – tratada na sua necessária dimensão político-ideológica – que desconsidera as implicações envolvidas na mercantilização dessa força de trabalho especializada.
A análise de Abreu tem seu centro na organização da cultura caucionada nas formas de organização da produção – dada a centralidade ao trabalho na vida em sociedade – insurgindo-se contra as análises que aprisionam a leitura da cultura na dimensão superestrutural. Porém, este pressuposto não impregna, com igual força, a análise do exercício profissional mediado por uma relação assalariada.
Não são privilegiadas nem as implicações oriundas da inscrição dessa força de trabalho especializada na esfera do valor de troca – pois o salário faz sua equivalência com o mundo das mercadorias – e nem as implicações do trabalho realizado pelo assistente social na órbita da produção e distribuição do valor e da mais-valia, porque essa não é a linha analítica adotada.
O fio teórico transversal a esta tese, cujos esteios se fundam no trabalho e na forma social que assume na sociedade burguesa, alimentou a hipótese norteadora da leitura da literatura considerada, aqui retomada, porque obteve sua confirmação: as elaborações consideradas centram-se nas particularidades do Serviço Social enquanto trabalho concreto, ou seja, priorizaram sob diversas ópticas, a qualidade determinada que distingue esse trabalho profissional no concerto das demais especializações do trabalho na sociedade brasileira, com ênfase nos seus componentes político-organizativos e ideológicos.
Ainda que a totalidade dos autores reconheça que o exercício profissional realiza-se pela mediação do trabalho assalariado, mediante um contrato de trabalho no circuito do Estado ou de empregadores privados, nenhum deles atribui centralidade à outra dimensão deste mesmo trabalho: sua condição de trabalho abstrato envolvida na compra e venda dessa força e trabalho especializada, porque suas elaborações não são presididas centralmente pela teoria do valor, tal como proposta por Marx.